segunda-feira, 11 de setembro de 2017

A corda bamba dos Tribunais de Contas

Quando nosso baiano libertador dos cativos idealizou a Primeira República pelos idos de 89 não conseguiu calcular a confusão jurídica em que o Brasil estava se metendo. Como bem disse a Dom Pedro II poucos anos depois da proclamação, “Majestade, me perdoe, eu não sabia que a República era isso”, o conjunto de desdobramentos políticos e sociais derivados da ruptura de um regime monárquico e a consequente federalização do país mostrou-se um conturbado processo com intricadas peças em uma pilha mambembe de cartas sobre um tabuleiro. Este jogo do poder abalou a confiança do maior baiano de todos os tempos, mas ainda havia um outro problema, de ordem conceitual, e envolve nossa concepção de análise jurídica.

Voltemos ao período do Império, na recém-desembarcada corte de D. João VI, quando foi criado o Conselho da Fazenda. A concepção de tal instituição é claramente baseada no Bureau de Comptabilité francês, criado sob forte influência iluminista e totalmente adaptada a tripartição de poderes idealizada por Montesquieu. Mas foi essa falsa aparência que levou Rui Barbosa à armadilha sistemática em que nos encontramos até hoje.

Ocorre que na França se adotava o sistema de Contencioso Administrativo, assim como em grande parte da Europa. Tal sistema tem origens que remontam ao absolutismo francês, o Ancién Regime, ou Antigo Regime, quando o Rei, como instância última de revisão das decisões, instituiu uma divisão entre a jurisdição administrativa e a jurisdição referente aos litígios privados. Com a Revolução Francesa, o Contencioso Administrativo passou a ter a forma que até hoje é conhecida, sendo norteado pela declaração de direitos do homem e do cidadão, pensamento ideológico de Rousseau:

“um povo livre obedece, mas não serve; tem chefes, mas não donos; obedece às Leis, mas nada mais que as Leis e é por força das Leis que não obedece aos homens. (...) Tudo que não está proibido pela Lei não pode ser impedido e ninguém pode ser obrigado a fazer o que a lei não ordena” (ROUSSEAU, 2002, p. 15).

Foi, com base em todas essas influências históricas e ideológicas que, na Assembleia Constituinte de 1790 (conceito posteriormente incluído na Constituição de 1791, Título III, Capítulo V, art.3) se formulou o conceito de Direito Administrativo Jurisdicional na França:

“As funções judiciais são e permanecerão separadas das funções administrativas. Os juízes não poderão, sob pena de prevaricação, interferir, de qualquer maneira que seja nas operações dos órgãos administrativos nem chamar a sua presença os administradores, em razão de suas funções.” (Constituição Francesa, 1791)

Seria, portanto, perfeitamente cabível que adotássemos o contencioso administrativo em nosso ordenamento jurídico. Mais eis que nosso grande jurista Rui Barbosa, maravilhado com Constituição Republicana Americana que trazia (e ainda traz) em seu bojo o garantismo universal, tratou de sedimentar em nossa primeira constituição federativa o instituto pétreo da Jurisdição Una.

Tal sistema é regido pelo princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional, como assim é ratificado na Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB) de 1988:

“Art. 5o, XXXV -a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito” (CRFB, 1988)

Por este princípio é descartada qualquer hipótese de proibição à justiça em caso de lesão ou ameça de direito. Tal conceito é extremamente amplo e efetivamente permite o acesso à justiça em todos os casos apreciados pelos processos administrativos.

Infelizmente para nós, a ideia primorosamente concebida por Rui Barbosa acabou se tornando o maior entrave às decisões dos Tribunais de Contas, eis que nosso modelo não é anglo-saxão, dotado de uma instância de auditoria geral, habitualmente ligada ao Parlamento e não colegiada independente, nem o modelo de Corte de Contas Francês, que se vale do contencioso administrativo. Do primeiro fazem parte, logicamente, os EUA e o Reino Unido, além dos países escandinavos Suécia, Dinamarca, Noruega e Finlândia. A maioria dos países da Europa Central e na América Latina, Chile, Colômbia e Equador. No segundo bloco temos os países com Contencioso Administrativo, como a já citada França. Espanha, Portugal e na América Latina o Uruguai.

O primeiro modelo tem a grande vantagem de dar a garantia da Jurisdição Una, já que age como polícia fiscal, com todas as prerrogativas investigatórias preservadas. O segundo modelo é ainda mais eficaz, já que as cortes no Contencioso Administrativo são instâncias independentes do judiciário.

No meio dessa confusão estamos nós. Os Tribunais de Contas brasileiros não tem o poder de polícia garantido pelo modelo anglo-saxão de auditorias independentes, tampouco produzem a validade jurídica de uma decisão judicial, apesar da interpretação constitucional dos tribunais superiores garantir que a matéria administrativa é competência única dos Tribunais de Contas. Mas o que se vê, na prática, são decisões judiciais de primeira instância atacando decisões das Cortes de Contas pelo Brasil afora, e não há qualquer indicação de que isso cessará

Como ilustração do atual cenário, utiliza-se o conceito de subsunção que é a ação ou efeito de subsumir, isto é, incluir alguma coisa em algo maior, abrangendo este contexto menor em uma realidade ampla. O que ocorre com o modelo de fiscalização de finanças públicas no Brasil é bem diferente disso, pois inexiste um enquadramento consistente deste formato no nosso ordenamento. Não há como considerar solidamente o modelo nacional de fiscalização como subsumido constitucionalmente, pois este é mitigado pela força do sistema de jurisdição una, apesar de norma expressa na Constituição Federal. Um verdadeiro cabo de guerra, onde, nitidamente, a cultura jurisdicional do Estado Brasileiro assolapa a função essencial de julgamento dos Tribunais de Contas, especificamente administrativa. A ideia, portanto, é subsumir a função de fiscalização estatal em uma forma que consiga transferir a força estatal jurisdicional, no tocante ao julgamento de contas públicas, para a realidade do mundo anímico. Como não se conta, no Brasil, com a força alternativa do sistema de Contencioso Administrativo, já que ausente do ordenamento jurídico nacional, resta apenas a própria Justiça Pública como sistema apto a absorver a função dos
Tribunais de Contas, a fim de resolver tal dilema.

Qual seria a solução?

Por incrível que pareça, ela existe. É óbvio e notório que a implantação de um Contencioso Administrativo no Brasil ficou pra trás, muito pra trás. Essa oportunidade, nosso emérito baiano perdeu em 1891. Também é complicado tentar se instituir no Brasil o modelo anglo-saxão de auditorias independentes.

Mas antes da se falar de tal solução é importante frisar: hoje as Cortes de Contas nacionais tem o mesmo custo (senão maior) dos tribunais judiciais de segunda instância. Os conselheiros são equiparados a desembargadores e o quadro funcional tem remuneração equivalente ao quadro judiciário.

Certo, e o que isso tem a ver com o assunto?

Muito, pois agora podemos falar do modelo grego.

O Tribunal de Contas da Grécia também teve sua origem baseada no modelo francês mas, diferentemente deste, não é regido pelo sistema de Contencioso Administrativo. Não é necessário que sejam produzidas decisões administrativas com força de decisões judiciais, por um motivo muito simples: o Tribunal de Contas Grego faz parte do Poder Judiciário Grego.

Trata-se de uma justiça especializada. Seus membros permanentes são juízes oriundos da Escola Nacional de Magistratura (National School of Judges). A competência jurisdicional é integral, inclusive em relação ao controle de constitucionalidade dos atos administrativos praticados. Sua competência abrange toda a análise e auditoria das contas públicas, advertências e consultas de diversos órgãos, inclusive da sociedade civil, bem como o julgamento, em nível de Suprema Corte Administrativa, das contas públicas submetidas. As decisões têm caráter irrevogável, mantidos os princípios do duplo grau, da ampla defesa e contraditório.

A Constituição Federal da Grécia assim dispõe sobre a competência da Corte de Contas:

1. A jurisdição do Tribunal de Contas diz respeito , principalmente, a:
a) A auditoria das despesas do Estado , bem como de agências governamentais locais ou outras pessoas coletivas sujeitas a esse status por disposição especial de lei.
b ) A auditoria de contratos de valor financeiro elevado em que o setor público ou outra entidade legal colocar-se na mesma categoria de parceiro contratual , conforme previsto por lei.
c ) A auditoria das contas dos funcionários responsáveis , das agências governamentais locais ou outras entidades jurídicas sujeitas à auditoria fornecidos pela seção ( a) .
d ) Os pareceres consultivos sobre contas em pensões ou no reconhecimento de serviço para a concessão do direito a uma pensão , nos termos do artigo 73 parágrafo 2 , bem como sobre outros assuntos previstos em lei .
e) A elaboração e apresentação ao Parlamento de um relatório sobre o balanço financeiro e o balanço do Estado , em conformidade com o artigo 79 parágrafo 7.
f ) O julgamento de litígios relativos à concessão de pensões , bem como relativos à auditoria de contas ao abrigo da secção (c) .
g ) O julgamento de casos relacionados com a responsabilidade de funcionários públicos e militares do Estado, bem como de funcionários de agências governamentais locais e das demais pessoas jurídicas de direito público, por qualquer perda incorrida, com má intenção ou negligência perante o Estado, as agências governamentais locais ou outras pessoas coletivas de direito público .
2. A autoridade do Tribunal de Contas deve ser regulamentada e exercida conforme especificado por lei. As disposições do artigo 93 o §2o e §3o não é aplicável nos casos especificados em (a ) a ( d ) do número anterior.
3. Os acórdãos do Tribunal de Contas, nos casos previstos no n o 1 não estão sujeitas ao controle da Suprema Corte Administrativa.

A Corte Helênica é organizada assim:
a) 1 Presidente;
b) 5 Vice-Presidentes;
c) 20 Conselheiros;
d) 40 Juízes Adjuntos;
e) 50 Juízes Relatores.

Todos têm status de juiz, de acordo com a Constituição. Nos postos de Juízes Relatores são nomeados apenas os graduados da Escola Nacional de Juízes. O Presidente e os Vice-Presidentes da Câmara são escolhidos entre os membros pelo Conselho.

Portanto, não soaria estranho que se falasse no Brasil, em Justiça Especial de Contas.

Em um país que procura especificar muitas de suas funções judiciais, não pode soar estranho tal terminologia. É importante ressaltar que já há diversos pedidos de especialização de outras funções jurisdicionais, a exemplo da reivindicação do direito agrário, como se pode ver em artigo de Alcir Gursen de Miranda (2004):

“(...) É certo que quase todos os países da América Latina possuem Justiça Agrária. Pequenos territorialmente e acanhados financeiramente, mas com governantes conscientes em proporcionar cidadania ao homem do campo. Para não ser enfadonho, seria suficiente citar o Tribunal Agrário no México, na Costa Rica e na Bolívia. Nessa linha, cabe destacar que a alegada falta de recursos financeiros para implantação da Justiça Agrária no Brasil não procede. O mesmo argumento foi usado durante a discussão para criação da Justiça do Trabalho e da Justiça Eleitoral, esta, hoje, um modelo para o mundo"

No entanto, é necessário fazer uma ressalva sobre a distinção de uma justiça que já está subsumida no Direito Civil e Constitucional, como a Justiça Agrária, e uma nova justiça, qual seja, a Justiça Especial de Contas. A Justiça Agrária já conta com varas e juízos especializados, portanto competentes para julgar a matéria agrária, mesmo que esta tenha origem em um processo administrativo. Já a Justiça Especial de Contas deverá ser uma inovação, determinada por força legislativa através de Emenda Constitucional. Não existem Juízes de Contas. Toda matéria é hoje analisada perante tribunal meramente administrativo.

No âmbito judicial, o processo é instaurado por iniciativa de uma parte, que por ser titular de um interesse conflitante com o da outra parte, necessita da intervenção do Estado-juiz para, atuando com imparcialidade, aplicar a lei ao caso concreto e decidir a lide. Trata-se de uma relação jurídica triangular em que é assegurada igualdade de oportunidades a cada um dos litigantes, desenvolvendo-se o contraditório de forma plena e consoante às disposições legais a respeito dos atos processuais a serem praticados pelas partes. Já na esfera administrativa o processo tem uma relação jurídica bilateral, que pode ser instaurada mediante provocação do interessado ou por iniciativa da própria Administração Pública, já que de um lado o administrado exige uma pretensão, e de outro lado, aquela a decide.

Verifica-se, pois, que, diferentemente do que ocorre no processo judicial, a Administração não age, no processo administrativo, como terceiro estranho à controvérsia, mas sim como parte interessada, que atua no seu próprio interesse e nos limites que lhe são impostos por lei. Por outro lado, como no processo administrativo o Estado atua não só quando provocado pelo particular, mas como parte na relação processual, claramente não é terceiro estranho à controvérsia. Entende a doutrina nacional, baseada no sistema da jurisdição una, que é defeso ao Estado proferir decisões com força de coisa julgada em âmbito administrativo, pois ninguém pode ser juiz e parte ao mesmo tempo, nem juiz em causa própria, razão pela qual as decisões proferidas no âmbito do processo administrativo não formam, no Direito Brasileiro, coisa julgada e podem ser revistas pelo Poder Judiciário, a quem incumbirá fazer controle de legalidade e até de mérito dos atos administrativos, de acordo com a doutrina mais contemporânea, bem explorada por Celso Antônio Bandeira de Mello (1981) em sua obra Discricionariedade e Controle Jurisdicional.

Como se vê com clareza, a doutrina brasileira, novamente, reforça a judicialização das decisões, sejam estas de quais natureza forem. Pelo visto no decorrer do estudo, é perfeitamente possível a criação de coisa julgada material, mesmo em relação processual bilateral, o que é feito se usando o sistema de contencioso administrativo a exemplo de diversos países. Este sistema se vale da imposição da supremacia da ordem pública para balizar e limitar suas decisões, dando segurança jurídica a mesma, além de respeitar todos os princípios implícitos ao Devido Processo Legal.

Isso não ocorre no Brasil, sendo desperdício de tempo e esforço intelectual da doutrina tentar implantar o sistema do contencioso administrativo em solo nacional. Portanto, a solução mais palpável parece ser a especialização da Justiça de Contas.

É de aguçada relevância ressaltar que a estrutura administrativa de um Tribunal de Contas pouco difere de um Tribunal Judicial, sendo por muitas vezes equivalentes. Entretanto, pela sua característica administrativa de autotutela, o Tribunal de Contas acumula também a função fiscalizatória, podendo dispor do poder de polícia. Para que a justiça especializada fiscalizatória seja implementada a contento, as estruturas técnica e jurisdicional devem manter certo distanciamento, eis que a tarefa de punir e julgar pertence, hoje, ao contexto estritamente administrativo, onde a relação processual é bilateral. Isso inexiste em um sistema jurisdicional, onde devem ser mantidos todos os princípios do Direito Processual.

Portanto é imprescindível que sejam isolados os corpos técnico e jurídico neste novel modelo. Assim sendo, não caberá ao Juiz de Contas coordenar inspetorias ou auditorias, tendo como sua atribuição aquelas pertinentes ao julgamento das contas e relatoria, como produção de provas e audiências, além da sentença.

O órgão também deverá, assim como toda justiça especial, contar com duplo grau de jurisdição, sendo o plenário responsável pelas decisões coletivas em grau de apelação, e o juízo a quo responsável pelas decisões monocráticas. No caso de controle de constitucionalidade em grau de recurso, o modelo grego, por exemplo, já o prevê na própria constituição como atribuição da Corte Helênica. No entanto, é plausível entender que tal configuração não se sustentaria no Brasil, devido ao alto grau de relevância dado ao Supremo Tribunal Federal pela constituição. Sendo assim, tal controle poderia ser mantido pela mais alta corte nacional.

Discutível também a necessidade de um Tribunal Superior de Contas, eis que a matéria levada a alta corte deveria, a princípio, constituir-se de afronta à Lei Federal. Portanto, cabe a alegação de que o próprio Superior Tribunal de Justiça seria competente para julgar a matéria. De qualquer sorte, pode-se usar o modelo adotado pelo Tribunal Superior Eleitoral, que é composto por Ministros de outras casas, para compor-se uma suposta Corte Superior de Contas.

O Ministério Público de Contas deverá, definitivamente, integrar a estrutura do Ministério Público, através de promotoria especializada, sendo o atual corpo de procuradores absorvido por este novo apêndice.

Quanto ao Juiz Relator, este não poderá conduzir as tomadas de contas, a fim de não ferir a relação triangular e os princípios da demanda e inércia. Assim, as auditorias e inspetorias, inclusive o seu planejamento, deverão ficar a cargo do corpo técnico administrativo. A análise das defesas preliminares deverá ser feita também neste contexto pelo Juiz de Contas relator. Tais peças funcionariam, analogicamente, como a contestação no Processo Civil. Como se pode ver, são mudanças que envolvem tanto a Lei Maior do país quanto legislação infraconstitucional, sendo necessária interferência legislativa, tanto na esfera federal quanto nos respectivos estados.


Apesar de certo juridiquês no texto, o que tentou se mostrar foi que uma Corte de Contas judicial resolveria definitivamente o impasse gerado pelo conflito entre Contencioso Administrativo e Jurisdição Una, além de ressaltar a importância dos Tribunais de Contas como órgão fiscalizador e inserir definitivamente a instituição no contexto de órgão julgador de contas, dirimindo a dúvida interpretativa sobre a execução orçamentária derivada de gestores ou agentes políticos (contas de governo versus contas de gestão) além de dar celeridade considerável ao processo de julgamento, eis que evitaria que o processo tramitasse na esfera jurídica comum, tendo seu atos dispostos apenas na própria Justiça Especial de Contas.

Em tempos discussão sobre a otimização do serviço público, a ideia é absolutamente válida.