A corda bamba dos
Tribunais de Contas
Quando nosso baiano
libertador dos cativos idealizou a Primeira República pelos idos de
89 não conseguiu calcular a confusão jurídica em que o Brasil
estava se metendo. Como bem disse a Dom Pedro II poucos anos depois
da proclamação, “Majestade, me perdoe, eu não sabia que a
República era isso”, o conjunto de desdobramentos políticos e
sociais derivados da ruptura de um regime monárquico e a consequente
federalização do país mostrou-se um conturbado processo com
intricadas peças em uma pilha mambembe de cartas sobre um tabuleiro.
Este jogo do poder abalou a confiança do maior baiano de todos os
tempos, mas ainda havia um outro problema, de ordem conceitual, e
envolve nossa concepção de análise jurídica.
Voltemos ao período
do Império, na recém-desembarcada corte de D. João VI, quando foi
criado o Conselho da Fazenda. A concepção de tal instituição é
claramente baseada no Bureau de Comptabilité francês, criado
sob forte influência iluminista e totalmente adaptada a tripartição
de poderes idealizada por Montesquieu. Mas foi essa falsa aparência
que levou Rui Barbosa à armadilha sistemática em que nos
encontramos até hoje.
Ocorre que na França
se adotava o sistema de Contencioso Administrativo, assim como em
grande parte da Europa. Tal sistema tem origens que remontam ao
absolutismo francês, o Ancién Regime, ou Antigo Regime,
quando o Rei, como instância última de revisão das decisões,
instituiu uma divisão entre a jurisdição administrativa e a
jurisdição referente aos litígios privados. Com a Revolução
Francesa, o Contencioso Administrativo passou a ter a forma que até
hoje é conhecida, sendo norteado pela declaração de direitos do
homem e do cidadão, pensamento ideológico de Rousseau:
“um povo livre
obedece, mas não serve; tem chefes, mas não donos; obedece às
Leis, mas nada mais que as Leis e é por força das Leis que não
obedece aos homens. (...) Tudo que não está proibido pela Lei não
pode ser impedido e ninguém pode ser obrigado a fazer o que a lei
não ordena” (ROUSSEAU, 2002, p. 15).
Foi, com base em
todas essas influências históricas e ideológicas que, na
Assembleia Constituinte de 1790 (conceito posteriormente incluído na
Constituição de 1791, Título III, Capítulo V, art.3) se formulou
o conceito de Direito Administrativo Jurisdicional na França:
“As funções
judiciais são e permanecerão separadas das funções
administrativas. Os juízes não poderão, sob pena de prevaricação,
interferir, de qualquer maneira que seja nas operações dos órgãos
administrativos nem chamar a sua presença os administradores, em
razão de suas funções.” (Constituição Francesa, 1791)
Seria, portanto,
perfeitamente cabível que adotássemos o contencioso administrativo
em nosso ordenamento jurídico. Mais eis que nosso grande jurista Rui
Barbosa, maravilhado com Constituição Republicana Americana que
trazia (e ainda traz) em seu bojo o garantismo universal, tratou de
sedimentar em nossa primeira constituição federativa o instituto
pétreo da Jurisdição Una.
Tal sistema é
regido pelo princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional,
como assim é ratificado na Constituição da República Federativa
do Brasil (CRFB) de 1988:
“Art. 5o, XXXV -a
lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou
ameaça a direito” (CRFB, 1988)
Por este princípio
é descartada qualquer hipótese de proibição à justiça em caso
de lesão ou ameça de direito. Tal conceito é extremamente amplo e
efetivamente permite o acesso à justiça em todos os casos
apreciados pelos processos administrativos.
Infelizmente para
nós, a ideia primorosamente concebida por Rui Barbosa acabou se
tornando o maior entrave às decisões dos Tribunais de Contas, eis
que nosso modelo não é anglo-saxão, dotado de uma instância de
auditoria geral, habitualmente ligada ao Parlamento e não colegiada
independente, nem o modelo de Corte de Contas Francês, que se vale
do contencioso administrativo. Do primeiro fazem parte, logicamente,
os EUA e o Reino Unido, além dos países escandinavos Suécia,
Dinamarca, Noruega e Finlândia. A maioria dos países da Europa
Central e na América Latina, Chile, Colômbia e Equador. No segundo
bloco temos os países com Contencioso Administrativo, como a já
citada França. Espanha, Portugal e na América Latina o Uruguai.
O primeiro modelo
tem a grande vantagem de dar a garantia da Jurisdição Una, já que
age como polícia fiscal, com todas as prerrogativas investigatórias
preservadas. O segundo modelo é ainda mais eficaz, já que as cortes
no Contencioso Administrativo são instâncias independentes do
judiciário.
No meio dessa
confusão estamos nós. Os Tribunais de Contas brasileiros não tem o
poder de polícia garantido pelo modelo anglo-saxão de auditorias
independentes, tampouco produzem a validade jurídica de uma decisão
judicial, apesar da interpretação constitucional dos tribunais
superiores garantir que a matéria administrativa é competência
única dos Tribunais de Contas. Mas o que se vê, na prática, são
decisões judiciais de primeira instância atacando decisões das
Cortes de Contas pelo Brasil afora, e não há qualquer indicação
de que isso cessará
Como ilustração do
atual cenário, utiliza-se o conceito de subsunção que é a ação
ou efeito de subsumir, isto é, incluir alguma coisa em algo maior,
abrangendo este contexto menor em uma realidade ampla. O que ocorre
com o modelo de fiscalização de finanças públicas no Brasil é
bem diferente disso, pois inexiste um enquadramento consistente deste
formato no nosso ordenamento. Não há como considerar solidamente o
modelo nacional de fiscalização como subsumido constitucionalmente,
pois este é mitigado pela força do sistema de jurisdição una,
apesar de norma expressa na Constituição Federal. Um verdadeiro
cabo de guerra, onde, nitidamente, a cultura jurisdicional do Estado
Brasileiro assolapa a função essencial de julgamento dos
Tribunais de Contas, especificamente administrativa. A ideia,
portanto, é subsumir a função de fiscalização estatal em uma
forma que consiga transferir a força estatal jurisdicional, no
tocante ao julgamento de contas públicas, para a realidade do mundo
anímico. Como não se conta, no Brasil, com a força alternativa do
sistema de Contencioso Administrativo, já que ausente do ordenamento
jurídico nacional, resta apenas a própria Justiça Pública como
sistema apto a absorver a função dos
Tribunais de Contas,
a fim de resolver tal dilema.
Qual seria a
solução?
Por incrível que
pareça, ela existe. É óbvio e notório que a implantação de um
Contencioso Administrativo no Brasil ficou pra trás, muito pra trás.
Essa oportunidade, nosso emérito baiano perdeu em 1891. Também é
complicado tentar se instituir no Brasil o modelo anglo-saxão de
auditorias independentes.
Mas antes da se
falar de tal solução é importante frisar: hoje as Cortes de Contas
nacionais tem o mesmo custo (senão maior) dos tribunais judiciais de
segunda instância. Os conselheiros são equiparados a
desembargadores e o quadro funcional tem remuneração equivalente ao
quadro judiciário.
Certo, e o que isso
tem a ver com o assunto?
Muito, pois agora
podemos falar do modelo grego.
O Tribunal de Contas
da Grécia também teve sua origem baseada no modelo francês mas,
diferentemente deste, não é regido pelo sistema de Contencioso
Administrativo. Não é necessário que sejam produzidas decisões
administrativas com força de decisões judiciais, por um motivo
muito simples: o Tribunal de Contas Grego faz parte do Poder
Judiciário Grego.
Trata-se de uma
justiça especializada. Seus membros permanentes são juízes
oriundos da Escola Nacional de Magistratura (National School of
Judges). A competência jurisdicional é integral, inclusive em
relação ao controle de constitucionalidade dos atos administrativos
praticados. Sua competência abrange toda a análise e auditoria das
contas públicas, advertências e consultas de diversos órgãos,
inclusive da sociedade civil, bem como o julgamento, em nível de
Suprema Corte
Administrativa, das contas públicas submetidas. As decisões têm
caráter irrevogável, mantidos os princípios do duplo grau, da
ampla defesa e contraditório.
A Constituição
Federal da Grécia assim dispõe sobre a competência da Corte de
Contas:
1. A jurisdição do
Tribunal de Contas diz respeito , principalmente, a:
a) A auditoria das
despesas do Estado , bem como de agências governamentais locais ou
outras pessoas coletivas sujeitas a esse status por disposição
especial de lei.
b ) A auditoria de
contratos de valor financeiro elevado em que o setor público ou
outra entidade legal colocar-se na mesma categoria de parceiro
contratual , conforme previsto por lei.
c ) A auditoria das
contas dos funcionários responsáveis , das agências governamentais
locais ou outras entidades jurídicas sujeitas à auditoria
fornecidos pela seção ( a) .
d ) Os pareceres
consultivos sobre contas em pensões ou no reconhecimento de serviço
para a concessão do direito a uma pensão , nos termos do artigo 73
parágrafo 2 , bem como sobre outros assuntos previstos em lei .
e) A elaboração e
apresentação ao Parlamento de um relatório sobre o balanço
financeiro e o balanço do Estado , em conformidade com o artigo 79
parágrafo 7.
f ) O julgamento de
litígios relativos à concessão de pensões , bem como relativos à
auditoria de contas ao abrigo da secção (c) .
g ) O julgamento de
casos relacionados com a responsabilidade de funcionários públicos
e militares do Estado, bem como de funcionários de agências
governamentais locais e das demais pessoas jurídicas de direito
público, por qualquer perda incorrida, com má intenção ou
negligência perante o Estado, as agências governamentais locais ou
outras pessoas coletivas de direito público .
2. A autoridade do
Tribunal de Contas deve ser regulamentada e exercida conforme
especificado por lei. As disposições do artigo 93 o §2o e §3o não
é aplicável nos casos especificados em (a ) a ( d ) do número
anterior.
3. Os acórdãos do
Tribunal de Contas, nos casos previstos no n o 1 não estão sujeitas
ao controle da Suprema Corte Administrativa.
A Corte Helênica é
organizada assim:
a) 1 Presidente;
b) 5
Vice-Presidentes;
c) 20 Conselheiros;
d) 40 Juízes
Adjuntos;
e) 50 Juízes
Relatores.
Todos têm status de
juiz, de acordo com a Constituição. Nos postos de Juízes Relatores
são nomeados apenas os graduados da Escola Nacional de Juízes. O
Presidente e os Vice-Presidentes da Câmara são escolhidos entre os
membros pelo Conselho.
Portanto, não
soaria estranho que se falasse no Brasil, em Justiça Especial de
Contas.
Em um país que
procura especificar muitas de suas funções judiciais, não pode
soar estranho tal terminologia. É importante ressaltar que já há
diversos pedidos de especialização de outras funções
jurisdicionais, a exemplo da reivindicação do direito agrário,
como se pode ver em artigo de Alcir Gursen de Miranda (2004):
“(...) É certo
que quase todos os países da América Latina possuem Justiça
Agrária. Pequenos territorialmente e acanhados financeiramente, mas
com governantes conscientes em proporcionar cidadania ao homem do
campo. Para não ser enfadonho, seria suficiente citar o Tribunal
Agrário no México, na Costa Rica e na Bolívia. Nessa linha, cabe
destacar que a alegada falta de recursos financeiros para implantação
da Justiça Agrária no Brasil não procede. O mesmo argumento foi usado durante a
discussão para criação da Justiça do Trabalho e da Justiça
Eleitoral, esta, hoje, um modelo para o mundo"
No entanto, é
necessário fazer uma ressalva sobre a distinção de uma justiça
que já está subsumida no Direito Civil e Constitucional, como a
Justiça Agrária, e uma nova justiça, qual seja, a Justiça
Especial de Contas. A Justiça Agrária já conta com varas e juízos
especializados, portanto competentes para julgar a matéria agrária,
mesmo que esta tenha origem em um processo administrativo. Já a
Justiça Especial de Contas deverá ser uma inovação, determinada
por força legislativa através de Emenda Constitucional. Não
existem Juízes de Contas. Toda matéria é hoje analisada perante
tribunal meramente administrativo.
No âmbito judicial,
o processo é instaurado por iniciativa de uma parte, que por ser
titular de um interesse conflitante com o da outra parte, necessita
da intervenção do Estado-juiz para, atuando com imparcialidade,
aplicar a lei ao caso concreto e decidir a lide. Trata-se de uma
relação jurídica triangular em que é assegurada igualdade de
oportunidades a cada um dos litigantes, desenvolvendo-se o
contraditório de forma plena e consoante às disposições legais a
respeito dos atos processuais a serem praticados pelas partes. Já na
esfera administrativa o processo tem uma relação jurídica
bilateral, que pode ser instaurada mediante provocação do
interessado ou por iniciativa da própria Administração Pública,
já que de um lado o administrado exige uma pretensão, e de outro
lado, aquela a decide.
Verifica-se, pois,
que, diferentemente do que ocorre no processo judicial, a
Administração não age, no processo administrativo, como terceiro
estranho à controvérsia, mas sim como parte interessada, que atua
no seu próprio interesse e nos limites que lhe são impostos por
lei. Por outro lado, como no processo administrativo o Estado atua
não só quando provocado pelo particular, mas como parte na relação
processual, claramente não é terceiro estranho à controvérsia.
Entende a doutrina nacional, baseada no sistema da jurisdição una,
que é defeso ao Estado proferir decisões com força de coisa
julgada em âmbito administrativo, pois ninguém pode ser juiz e
parte ao mesmo tempo, nem juiz em causa própria, razão pela qual as
decisões proferidas no âmbito do processo administrativo não
formam, no Direito Brasileiro, coisa julgada e podem ser revistas
pelo Poder Judiciário, a quem incumbirá fazer controle de
legalidade e até de mérito dos atos administrativos, de acordo com
a doutrina mais contemporânea, bem explorada por Celso Antônio
Bandeira de Mello (1981) em sua obra Discricionariedade e Controle
Jurisdicional.
Como se vê com
clareza, a doutrina brasileira, novamente, reforça a judicialização
das decisões, sejam estas de quais natureza forem. Pelo visto no
decorrer do estudo, é perfeitamente possível a criação de coisa
julgada material, mesmo em relação processual bilateral, o que é
feito se usando o sistema de contencioso administrativo a exemplo de
diversos países. Este sistema se vale da imposição da supremacia
da ordem pública para balizar e limitar suas decisões, dando
segurança jurídica a mesma, além de respeitar todos os princípios
implícitos ao Devido Processo Legal.
Isso não ocorre no
Brasil, sendo desperdício de tempo e esforço intelectual da
doutrina tentar implantar o sistema do contencioso administrativo em
solo nacional. Portanto, a solução mais palpável parece ser a
especialização da Justiça de Contas.
É de aguçada
relevância ressaltar que a estrutura administrativa de um Tribunal
de Contas pouco difere de um Tribunal Judicial, sendo por muitas
vezes equivalentes. Entretanto, pela sua característica
administrativa de autotutela, o Tribunal de Contas acumula também a
função fiscalizatória, podendo dispor do poder de polícia. Para
que a justiça especializada fiscalizatória seja implementada a
contento, as estruturas técnica e jurisdicional devem manter certo
distanciamento, eis que a tarefa de
punir e julgar pertence, hoje, ao contexto estritamente
administrativo, onde a relação processual é bilateral. Isso
inexiste em um sistema jurisdicional, onde devem ser mantidos todos
os princípios do Direito Processual.
Portanto é
imprescindível que sejam isolados os corpos técnico e jurídico
neste novel modelo. Assim sendo, não caberá ao Juiz de Contas
coordenar inspetorias ou auditorias, tendo como sua atribuição
aquelas pertinentes ao julgamento das contas e relatoria, como
produção de provas e audiências, além da sentença.
O órgão também
deverá, assim como toda justiça especial, contar com duplo grau de
jurisdição, sendo o plenário responsável pelas decisões
coletivas em grau de apelação, e o juízo a quo responsável pelas
decisões monocráticas. No caso de controle de constitucionalidade
em grau de recurso, o modelo grego, por exemplo, já o prevê na
própria constituição como atribuição da Corte Helênica. No
entanto, é plausível entender que tal configuração não se
sustentaria no Brasil, devido ao alto grau de relevância dado ao
Supremo Tribunal Federal pela constituição. Sendo assim, tal
controle poderia ser mantido pela mais alta corte nacional.
Discutível também
a necessidade de um Tribunal Superior de Contas, eis que a matéria
levada a alta corte deveria, a princípio, constituir-se de afronta à
Lei Federal. Portanto, cabe a alegação de que o próprio Superior
Tribunal de Justiça seria competente para julgar a matéria. De
qualquer sorte, pode-se usar o modelo adotado pelo Tribunal Superior
Eleitoral, que é composto por Ministros de outras casas, para
compor-se uma suposta Corte Superior de Contas.
O Ministério
Público de Contas deverá, definitivamente, integrar a estrutura do
Ministério Público, através de promotoria especializada, sendo o
atual corpo de procuradores absorvido por este novo apêndice.
Quanto ao Juiz
Relator, este não poderá conduzir as tomadas de contas, a fim de
não ferir a relação triangular e os princípios da demanda e
inércia. Assim, as auditorias e inspetorias, inclusive o seu
planejamento, deverão ficar a cargo do corpo técnico
administrativo. A análise das defesas preliminares deverá ser feita
também neste contexto pelo Juiz de Contas relator. Tais peças
funcionariam, analogicamente, como a contestação no Processo Civil.
Como se pode ver, são mudanças que envolvem tanto a Lei Maior do
país quanto legislação infraconstitucional, sendo necessária
interferência legislativa, tanto na esfera federal quanto nos
respectivos estados.
Apesar de certo
juridiquês no texto, o que tentou se mostrar foi que uma Corte de
Contas judicial resolveria definitivamente o impasse gerado pelo
conflito entre Contencioso Administrativo e Jurisdição Una, além
de ressaltar a importância dos Tribunais de Contas como órgão
fiscalizador e inserir definitivamente a instituição no contexto de
órgão julgador de contas, dirimindo a dúvida interpretativa sobre
a execução orçamentária derivada de gestores ou agentes políticos
(contas de governo versus contas de gestão) além de dar celeridade
considerável ao processo de julgamento, eis que evitaria que o
processo tramitasse na esfera jurídica comum, tendo seu atos
dispostos apenas na própria Justiça Especial de Contas.
Em tempos discussão sobre a otimização do serviço público, a ideia é absolutamente válida.
Em tempos discussão sobre a otimização do serviço público, a ideia é absolutamente válida.